Texto António Guerreiro
Discreto e pouco prolixo, Carlos Poças Falcão publicou de 1987 até hoje meia dúzia de livros e alguns poemas avulsos. Reunidos agora num só volume, que inclui alguns inéditos, eles ganham uma dimensão perante a qual não podemos ser cegos nem sóbrios: trata-se de uma obra poética poderosa que se mede pelos mais altos critérios de exigência, quer no trabalho extremamente minucioso e rigoroso da composição quer na intensidade com que ela se põe a caminho daquilo a que Mallarmé chamava "a explicação órfica da terra", que ele dizia ser "o ' único dever do poeta e o jogo literário por excelência". E, dizendo isto, estamos a sugerir duas coisas: que Carlos Poças Falcão é um poeta órfico (pertence à família de um Herberto Hélder, algo que é mais notório nos seus primeiros livros); e que há nele a pulsão trágica do todo e do infinito, reiterada na palavra "mundo", que embora declinada em figurações laicas, ganha ressonâncias teológicas: "Eis o coração do mundo, a forma do mundo/ em que a velocidade salta, a vida alastra/em fulcros, numa violência habitual,/árdua e descontínua com uma cabeça a ver/ cada maravilha, os vulcões, as zonas fundas/ e esses incansáveis ani-' mais, do seu nome/ despegados, as pregas do mar e as contínuas/ polinizações, solares ventilações,/ tudo a afluir a uma cabeça acelerada,/ uma alma rotativa de grinaldas, tempos/ a soprar nos frutos, por jóias incrustadas/ numa ondulação, uma forma, um coração". Este poema, do livro "Três Ritos", de 1993, pertence a uma fase de grande exuberância imagética (nos seus últimos livros, Carlos Poças Falcão tende para um discurso lapidar e elíptico), em que a palavra poética, por força da proferição, parece instaurar – e não representar – “a forma do mundo”.
Mas o que é um poeta órfico? Quando se fala de orfismo, pensa-se imediatamente nos hinos órficos, nos cantos em honra dos deuses. Aquilo que na modernidade se chamou "poesia pura" não, é senão uma poesia que segue o caminho inverso da secularização e experimenta um ressurgimento religioso, evoca um fundo cultural. Esta poesia que tem o carácter de hino - opondo-se à lírica burguesa moderna - parece ressuscitar aquilo que a modernidade tinha eclipsado: uma harmonia austera e um pressuposto teológico. A poesia de Carlos Poças Falcão pode ser lida com base neste pressuposto (mas o conhecimento científico não é nela menos importante) com tudo aquilo que ele implica de "desaparecimento elocutório" do Eu do poeta, como dizia Mallarmé. É por isso que ela é tão impessoal: porque é a experiência de uma voz e não de um Eu; e tão a-histórica: porque é uma proferição sem tempo, em que o aqui e agora abre sempre o abismo da intemporalidade e reatualiza a fundação e a expansão do mundo: "Quando uma passada ritmar o pensamento/ a terra aparece a mover-se arcaicamente./ Ajusta-se em destino, a dor, nesse desejo/ de iluminar perguntas, a ouro, em incisões. mas a vida expande, redobra, infunde rirmos/ para que os pulmões, os membros, as cabeças amem ir assim, numa passada.
Talvez chames/ alegria ao coração, ao passo, o movimento". A dialética holderliniana do "orgânico" (o particular, o limitado, a ordem, a forma) e do "aórgico" (o universal, o ilimitado, o infinito, o informe) encontra nesta obra poética uma atualização muito evidente.
Fácil é perceber, pelo que atrás foi dito, que se trata de uma poesia que, sem quaisquer ilusões nem ingenuidades (pelo contrário, ela revela uma profunda autoconsciência), se dirige numa direção em que se defronta voluntariamente com o que a modernidade eclipsou: o orfismo e o hino como canto de louvor e celebração.
oguerreiroxpresso.impresa.pt
in Expresso/22 de dezembro de 2012/ATUAL/32
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